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sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

ESPECIAL 27/Jan: Negar a história - profanar a memória

"As coisas que vi estão além do que pode ser narrado. As provas visíveis e os testemunhos sobre a fome, a crueldade e a bestialidade foram esmagadores. Visitei o lugar, pessoalmente, com toda boa vontade, para poder estar em condições de apresentar evidências de primeira mão se no futuro houver qualquer planejamento de qualificar essas evidências como 'propaganda'."

Gral. Dwight Eisenhower
15 Abril, 1945


Com essa citação gravada sobre uma parede de mármore, começa a visita ao Museu do Holocausto de Washington.

A negação da história não deveria nos surpreender. Segundo o Dr. Gregory H. Stanton, Presidente do Genocide Watch: "O genocídio é um processo que ocorre em oito etapas que são previsíveis, mas não determinantes. Ele pode ser detido em cada uma das etapas. As últimas etapas deverão ser precedidas pelas anteriores, embora as primeiras continuem operando durante o processo: Classificação, Simbolização, Desumanização, Organização, Polarização, Identificação e Segregação, Extermínio e Negação".

Como vemos, a negação é mais uma etapa na realização de um genocídio. Em palavras de Richard Cohen: "a verdade é a última vítima do genocídio".

Os perpetradores do genocídio tratam de todas as maneiras de fazer desaparecer as evidências e intimidar as testemunhas, ocultando e negando o crime cometido. Existem exemplos em abundância na história e um dos mais destacados faz parte da negação do genocídio armênio realizado pelo governo turco.

Assim como cada genocídio tem suas características próprias, a sua negação também possui traços peculiares. Na negação do Holocausto, não só se pretende negar os fatos historicamente reconhecidos, reivindicando uma ideologia perversa que atentou contra os fundamentos básicos de uma sociedade democrática, mas aspira transformar as vítimas em vitimários, acusando-as de participarem de uma conspiração que pretende enganar o público em geral, e tirar crédito do sofrimento padecido.

É nesse ponto que a negação do Holocausto toma um ponto peculiar e expõe suas intenções judeofóbicas, difamando os judeus e incentivando o ódio.

A Negação do Holocausto começou a ser conhecida já nos finais da década de 40 do século passado, teve maior presença em vários lugares do mundo na década de 70, e hoje, através da internet, tem se disseminado pelo mundo inteiro, entrando em cada um dos lares e difundindo sua doutrina, muitas vezes sem ser percebido como fenômeno da forma que realmente é.

Está integrado por indivíduos que ostentam títulos profissionais e se esforçam para usar o papel de homens científicos sérios e apegados à exatidão e ao rigor detalhista.

A manipulação de dados, a falácia das suas afirmações, o desprezo pelas fontes históricas e o seu meticuloso esforço por transformar as vítimas em culpáveis verdugos, tornando-os verdadeiros vitimários, fazem parte do Revisionismo Histórico.


O Instituto de Revisionismo Histórico criado em 1978, na Califórnia, forma o núcleo acadêmico deste movimento e está dedicado a arrecadar fundos, organizar encontros, promover o debate, realizar seminários e conferências, e difundir suas ideias em livros, panfletos, revistas e páginas da web. Seu objetivo principal é chegar aos jovens estudantes.

Apesar de nos encontrarmos frente a um dos fatos históricos mais documentados da história mundial, os negacionistas tangenciam os fatos questionando a veracidade dos detalhes, descartando a  documentação e os testemunhos de diversas e numerosíssimas fontes: alemãs, judias, polacas, soviéticas, entre outras, além de materiais comprobatórios dos numerosos processos legais pós-guerra e de diferentes julgamentos contra os negacionistas.

Tem falsificado a história para tratar de impedir que
Hitler fique envolvido no assassinato em massa de judeus.
Um dos julgamentos onde a verdade histórica desmascarou as verdadeiras intenções dos negacionistas foi o que ocorreu no ano 2000, quando o escritor britânico David Irving acusou a acadêmica americana Deborah Lipstadt e a editora Penguin Books de difamação. É importante destacar que o julgamento foi iniciado pelo próprio Irving e ocorreu em Londres, no seu próprio país.

Em seu livro "Negando o Holocausto: o assalto crescente à verdade e à memória", Lipstdadt descreveu Irving como integrante de um movimento que pretende reivindicar o Nazismo negando a realidade histórica de seus crimes.

Em seus escritos, Lipstadt sustenta que Irving tangencia e manipula a evidência histórica "para adequá-la ao seu pensamento ideológico e à sua agenda política" e longe de ser um historiador responsável, acusa-o de ser "extremista, mentiroso, e um dos mais perigosos porta-vozes da Negação do Holocausto". Após um longo julgamento, que muito chamou a atenção da imprensa, o juiz Gray, na sua sentença de 300 páginas, determinou, dentre outras coisas, sobre Irving:

"Irving é um racista, antissemita associado a extremistas neonazistas, e tem falsificado a história para tratar de impedir que Hitler fique envolvido no assassinato em massa dos judeus."

"Percebi, como fatos substanciais, que Irving tem como sua ideologia buscar deliberadamente a manipulação e a falsificação da História."

Por que desafiar a verdade de mais de 50 milhões de páginas de documentação e mais de 70.000 volumes sobre o Holocausto que existem no Museu de Yad Vashem, em Israel?

Por que duvidar dos arquivos nacionais de Estados Unidos, Alemanha e países da Europa Oriental que contêm inúmeros documentos pertinentes a distintas etapas da Segunda Guerra Mundial e ao assassinato dos judeus?

Por que desqualificar os milhões de testemunhos de testemunhas oculares, começando pelos dos próprios vitimadores, das vítimas e dos observadores? 

Por que descartar milhões de estudos e investigações históricas realizadas por profissionais qualificados?

A que se deve tanta cegueira?

A que se deve tanta cegueira?
A Negação do Holocausto serve de plataforma para o antissemitismo moderno, um novo ingrediente para velhas receitas de ódio. Um ódio que deixa a visão turva e condiciona a racionalidade.

A Negação do Holocausto não deve ser vista como uma agressão a um grupo em particular. Seus planejamentos constituem um insulto a civilização inteira.

Apelam à incredulidade, brincando e menosprezando a capacidade do discernimento do público ao qual se dirigem. Seus ataques à história do Holocausto fazem parte de um ataque aos valores mais essenciais de uma sociedade livre.

Por isso a negação tem sido combatida no mundo ocidental tanto no âmbito político como no legal. No âmbito político internacional foi rejeitada pelo Fórum de Estocolmo (2000), pelas Nações Unidas (2005) e pela União Europeia (2006). Em âmbito legal, está proibida por lei em vários países da Europa.

Nesse contexto, é preocupante a recente decisão do Papa Bento XVI de retirar a excomunhão de um bispo que negar o Holocausto publicamente, isso quando ainda ressoa o silêncio do Papa Pio XII durante a barbárie.

Desde que passou a ser combatida no ocidente, a negação se alojou no mundo muçulmano, onde foi recebida com festa, conformando uma maquiavélica combinação de antissemitismo com antissionismo, sendo utilizada, além disso, como meio político para tratar de deslegitimar a própria existência do Estado de Israel.

É incompreensível e inaceitável que um país como o Irã, integrante das Nações Unidas, viole a resolução tomada em seu meio de condenar a negação do Holocausto, organize um Congresso de negacionistas, edite livros difamatórios, ameace com a destruição de Israel e a organização internacional os acolha permanentemente em absoluto silêncio mediante tal afronta.

Mas é com o âmbito educativo que deveríamos nos preocupar mais.

O legado do Holocausto é universal, e toca em temas que têm a ver com a própria essência do ser humano. O Holocausto se transformou, hoje, num paradigma do mal a partir do qual podemos analisar diferentes condutas do homem e tomar conciência da capacidade que nós, seres humanos, temos para criar e fazer o bem, assim como para destruir e fazer o mal.

No começo do século XXI, vivíamos num mundo cada vez mais distante dos eventos do período nazista, mas nem por isso mais distante dos prejuízos, da violência, da discriminação, da intolerância e do ódio.

Crianças alemãs lendo um livro antissemita
intitulado "O Cogumelo Venenoso".
Esse foi um crime que se estendeu para além das suas vítimas diretas, que não foram somente judias, afetando toda humanidade. E os reflexos sobre as responsabilidades vão além do mero repúdio à crueldade nazista. Trata-se de um fato que compromete a própria essência do ser humano e como tal deve ser ensinado.

A história do Holocausto nos adverte como uma convergência de fatores pode contribuir para a desintegração dos valores democráticos, nos chama a identificar os sinais de perigo e a aprender quando e como reagir.

Negar o Holocausto é negar a possibilidade de aprender a nos conhecermos, é negar a possibilidade de exercer uma memória exemplar que nos sirva de advertência para evitar novas tragédias, é negar à humanidade a possibilidade de se defender de novas atrocidades.

A verdade é um direito que ninguém deveria violar.

Em relação à utilização da terminologia do Holocausto aplicada ao conflito do Oriente Médio, acredito que aqueles que assim o consideram desconhecem a complexidade desses fatos históricos, ou banalizam intencionalmente aquilo que foi realmente uma máquina de extermínio nazi por um lado e os perigos que o terrorismo pode implicar pelo outro. Mas a análise desse tema necessitaria de um outro artigo.

Gunter Grass, escritor alemão ganhador em 1999 dos Prêmios Nobel de Literatura e Príncipe de Asturias, escreveu em seu livro "Escrever depois de Auschwitz":

"Não podemos ignorar Auschwitz.

Não deveríamos, por mais que nos atraia, realizar esse ato de violência porque Auschwitz faz parte de nós, é uma marca a fogo permanente de nossa história e, gananciosamente, tem tornado possível um entendimento que pode ser expressado assim: até que enfim nos conhecemos."

O eco desse "até que enfim nos conhecemos" ressoou com muito mais força uma vez que o escritor reconheceu publicamente ter pertencido, quando jovem, às Waffen SS, um braço armado da máquina nazista.

Tomara que esse eco não se cale jamais.

Por Isabel Burstein / Yad Vashem
Tradução: Jônatha Bittencourt

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