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segunda-feira, 16 de abril de 2012

Retirada dos Estados Unidos: bênção e maldição

“A população quer paz, não deseja mais lutar, e por isso
aceitará qualquer governo títere imposto pelos EUA.”
Apesar de o anúncio feito pelos Estados Unidos, de que retirará suas tropas do Afeganistão até 2014, ter sido comemorado pela maioria dos afegãos como o iminente fim da ocupação, permanecem grandes dúvidas.

Especificamente, tanto especialistas como o público em geral se perguntam se isto será benéfico para a democracia ou, pelo contrário, tornará este país ainda mais vulnerável e violento. Outros duvidam que o Afeganistão algum dia se livrará da presença dos Estados Unidos, considerando que seu território tem um importante valor estratégico, perto do Irã e do Paquistão.

Mais de dez anos após a chegada das tropas estrangeiras para “lutar contra o terrorismo”, o povo afegão se pergunta abertamente qual é o “verdadeiro objetivo” de Washington. “A meta não era lutar contra o terrorismo, apesar de terem matado Osama bin Laden. A rede radical islâmica Al Qaeda ainda está aqui e se espalha por toda a região (Tajiquistão, Uzbequistão, etc.), o que é útil para os Estados Unidos, porque lhe pedirão ajuda e poderá usar isso como desculpa para continuar na região”, declarou à IPS o jornalista Naseer Fayaz.

Embora o presidente Barack Obama tenha anunciado a retirada de uma parte de suas tropas até o final de 2014, poucos esperam que isto provoque uma mudança real no terreno. Os norte-americanos “nunca deixarão o Afeganistão porque é muito importante do ponto de vista geográfico. A estratégia dos Estados Unidos é de longo prazo. Está aqui para controlar a Ásia central. Usam a desculpa da Al Qaeda para permanecerem aqui, enquanto negociam com alguns jihadistas (combatentes islâmicos) para alcançarem suas metas”, destacou Fayaz.

Por sua vez, Wadeer Safi, professor de direito na Universidade de Cabul, afirmou que as tropas estrangeiras permanecerão em solo afegão por outra razão relevante para a população. “Os Estados Unidos não deixarão o Afeganistão enquanto não concretizarem seu sonho de instaurar um governo que se baseie na transparência e na justiça social. Este não é o caso no momento. Os criminosos têm o poder e devem ser levados a julgamento”, disse à IPS.

“Se as tropas estrangeiras deixarem o país nas mãos dos fundamentalistas, o Afeganistão se converterá em um Estado narco vinculado com o Paquistão”, alertou o professor, uma especulação apoiada pelo fato de a maior quantidade de papoulas (matéria-prima do ópio, da heroína e da morfina) do mundo ser cultivada no Afeganistão. Este país plantou entre 123 mil e 195 mil hectares de papoulas em 2010. Além disso, o Afeganistão é a segunda nação com os mais altos níveis de corrupção, atrás da Somália. Isto enche de pessimismo a população afegã no que diz respeito ao seu futuro.

No entanto, a maior parte dos afegãos está a favor da retirada de todas as tropas estrangeiras. Após um massacre na cidade de Kandahar e da polêmica desatada pela queima de cópias do Alcorão na base militar norte-americana de Bagram, as tensões aumentaram em todo o país, chegando inclusive a Cabul, onde as forças internacionais foram substituídas pelo exército e pela polícia locais.

Porém, “poucas pessoas confiam na polícia afegã, que está dividida em grupos étnicos”, contou Fayaz, acrescentando que os diplomatas e empresários apelavam para empresas de segurança privada, às vezes estrangeiras, para sua proteção. As embaixadas estão completamente cercadas por muralhas de concreto, e a entrada não é permitida a afegãos sem autorização especial.

A presença de senhores da guerra e suas milícias é um perigo que pode se exacerbar com a saída das tropas estrangeiras, embora no momento as hostilidades tenham cessado graças a um acordo para dividir o poder. Alguns especialistas acreditam que uma retirada total levará a uma guerra civil. Outros mantêm a ideia de que considerar as forças norte-americanas como “salvadoras” do país é mera propaganda.

“Washington quer vender mais armas aos afegãos, mas a origem do problema está na ocupação e nos senhores da guerra no poder. Apenas os corruptos querem que as tropas fiquem. As ocupações estrangeiras nunca trouxeram democracia. O povo deve lutar por sua liberdade”, disse à IPS a ex-parlamentar Malalai Joya.

“Não é fácil lutar contra a ocupação”, afirmou Baseer, chefe da “shura” (conselho tribal) de Khewa in Dar-e-Noor, perto da cidade de Jalalabad. “Mesmo se 99% da população estiver contra a ocupação, será difícil defender sua posição porque será acusado pelo governo de ser um talibã”, com todas as consequências que isso traz, advertiu à IPS. “Precisamos de tempo. Já lutamos contra a ocupação soviética, contra os jihadistas, contra o movimento islâmico Talibã e agora sofremos uma nova ocupação. Estamos com o povo, e tentamos resolver seus problemas. É por isso que ainda estamos aqui”, ressaltou.

Baseer também afirmou que, se estourar uma guerra civil, será apenas em reação aos milhões de dólares que continuam chegando ao Afeganistão do exterior “para que uns poucos ricos construam suas mansões”, e não para a retirada das tropas norte-americanas. Luxuosas casas se espalham junto às tradicionais moradias de barro afegãs, realçando a crescente brecha entre um punhado de ricos e a vasta maioria de pobres.

“A população quer paz, não deseja mais lutar, e por isso aceitará qualquer governo títere imposto pelos Estados Unidos”, apontou à IPS o líder do secular Partido da Solidariedade do Afeganistão, Hafiz Rashid. Em todo caso, acrescentou, os Estados Unidos não sairão completamente, apenas reduzirão o número de soldados em suas bases.

Em uma reunião com um grupo de vítimas da guerra, na antiga cidade de Shari-Kua e com a maioria dos presentes formada por viúvas pedindo justiça, ficou claro que muitas pessoas estão dispostas a aceitar a presença de tropas estrangeiras, “se isto significar a paz”. É o que afirmou no encontro Fatima, que perdeu seu marido durante a guerra civil iniciada no país a partir de 1992. “Me preocupam os últimos acontecimentos na base de Bagram, onde soldados dos Estados Unidos queimaram o Alcorão. Contudo, se respeitarem nossa religião e nos ajudarem, não serei contra eles”, afirmou.

Envolverde/IPS (FIN/2012)

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