Para o cientista político Samuel Feldberg, é correto dizer que a Irmandade Muçulmana se tornou menos radical do que na sua origem, mas isso não é garantia de respeito aos elementos ocidentais.
Autor de "Estados Unidos e Israel - Uma aliança em questão" (2008), ele é professor de Relações Internacionais das Faculdades Rio Branco, onde ensina História, Segurança Internacional e Terrorismo e é membro do Grupo de Análise de Conjuntura Internacional da USP.
Essa onda de revoluções populares que se alastra pelo Oriente Médio são uma dor de cabeça, um alívio, ou ambas as coisas para o Estado de Israel?
Primeiramente, gostaria de fazer uma pequena correção. Israel, ao lado da Turquia, é uma democracia no Oriente Médio. Mesmo sendo exceções acho importante reconhecer que existe um estado muçulmano que também é uma democracia, o que demonstra que não há incompatibilidade, em princípio, entre Islã e democracia.
Obviamente, uma série de dificuldades se apresentam e a Turquia talvez até seja um bom exemplo de como é complicado o surgimento de uma democracia em um Estado Muçulmano.
No ponto de vista de Israel o que está acontecendo no Oriente Médio traz enormes preocupações, porque por menos simpático que possa soar, os governos que fizeram a paz com Israel ao longo dos últimos anos representaram um elemento de estabilidade importante.
O governo de Mubarak, apoiado pelos militares, com todos os problemas que isso representa para a sociedade egípcia, optou por manter uma relação de paz com Israel e as incógnitas que surgem para o futuro próximo vão certamente afetar a capacidade israelense de se comportar como vinha se comportando ao longo desses últimos anos.
Isso tem reflexos na economia, que terá que levar em conta no seu orçamento no futuro próximo a possibilidade de uma desestabilização das suas fronteiras no Sul. Tem um impacto nas relações com os palestinos, que eventualmente vão sofrer o efeito de uma maior aproximação de um futuro governo Egípcio com grupos radicais como o Hamas.
E certamente tem um efeito importante na percepção da ameaça iraniana, já que um Egito com o regime que existia até o momento certamente era visto como um elemento de equilíbrio para as aspirações hegemônicas iranianas na região.
Quem são os movimentos sociais árabes com quem Israel pode dialogar nesse momento tão fluido da política no Oriente Médio? Quando caem os governos, quem está do outro lado da mesa para um novo começo?
Na verdade os governos não têm caído, o que tem acontecido nessa primeira etapa é uma substituição dos líderes aparentes desse governo. Os líderes da Tunísia e do Egito foram afastados mas as estruturas que governam esses países continuam lá, então, nesse sentido Israel não tem, por enquanto, nenhuma outra alternativa de diálogo. O que aparece no horizonte é o risco de uma eventual substituição dessas estruturas que governam os países árabes.
É correto dizer que a Irmandade Muçulmana se tornou menos radical do que na sua origem, mas os elementos que apontam para um possível comportamento dela no poder continuam presentes. A carta de fundação continua existindo e nela os elementos ocidentais presentes no Oriente Médio são apresentados como os principais inimigos dessa organização.
Então se num primeiro momento uma Irmandade Muçulmana pudesse fazer parte de um governo egípcio democrático, isso não significa que ela não poderia ao longo do tempo aumentar sua capacidade de influenciar o comportamento do governo egípcio e, democraticamente, chegar ao poder. A partir de então, implementar aquilo que continua nos seus planos.
Eu sempre faço o paralelo com o que aconteceu com a Alemanha nazista no início do processo de tomada do poder pelos nazistas. Hitler certamente não usou os argumentos que ele apresentou em seu livro Mein Kampf durante a campanha eleitoral de 1932, mas uma vez que chegou ao poder e deu o golpe que consolidou a tomada do poder pelos nazistas na Alemanha, ele implementou exatamente aquilo que estava em seus escritos.
Então dizer que aquilo que está escrito é parte do passado e não vai ser resgatado no futuro quando uma determinada organização chega no poder é um pouco de wishful thinking (raciocínio caprichoso), e toda a precaução deve ser tomada para que isso não aconteça.
Numa palestra sua de 2009, você dizia que quando faz simulações em sala de aula para tentar reproduzir negociações entre palestinos e israelenses ou entre árabes e israelenses, nenhum aluno quer ser israelense, todo mundo quer ser palestino. Por que isso acontece? Você acha que existem caracterizações de vitimização injustas de ambas as partes?
Sem dúvida alguma, as narrativas dos dois lados são absolutamente opostas e existe uma tendência natural de identificação com aquele que apresentado como a vítima mais severa. Então se nós temos histórias de tragédias dos dois lados, nós certamente temos no momento uma situação em que a população palestina está sofrendo o impacto da evolução dos eventos no Oriente Médio nos últimos 60 anos.
Israel se consolidou como um Estado bem sucedido, onde a população tem um nível de vida muito elevado para os padrões da região. Enquanto no lado palestino, por uma série de razões, a população vem sofrendo os impactos dos eventos históricos desse período agravado por uma divisão importante na sua liderança que não permite uma solução de seus problemas.
Então, certamente o que nós vemos aqui no Brasil como uma identificação, especialmente dos grupos de esquerda e das populações mais jovens e mais educadas, com a causa palestina, é reflexo do que a mídia transmite em termos da situação atual.
A fragmentação da política israelense impede que haja avanços na resolução do conflito israelo-palestino?
Eu não diria que é a divisão política interna que é o responsável por esse fracasso. Sem dúvida nenhuma, Israel, como uma democracia, paga o preço que todos os regimes democráticos pagam. Eventualmente, há impossibilidades em fazer avançar determinadas políticas que são contraditórias.
Nós temos em toda a história de Israel governos de coalizão que representam interesses muitas vezes paroquiais, mas eu tenho firme convicção de que o que norteia a política externa israelense é o interesse vital de Israel. E se hoje, por exemplo, nós temos um governo de direita em Israel - que não tem avançado muito nas negociações com os palestinos -, isso está muito mais relacionado com a impossibilidade de perceber um prêmio que pode ser obtido através de concessões que levem a um acordo de paz do que com a defesa de interesses da direita israelense, que não aceitaria negociar com os palestinos.
Irã. É a maior preocupação de Israel hoje?
O Irã é uma grande incógnita. Sem dúvidas, é percebido como uma enorme preocupação pela liderança israelense - talvez seja hoje o maior símbolo de uma ameaça existencial a Israel, em função do desenvolvimento do programa nuclear iraniano. Israel sempre esteve frente a uma ameaça de um universo árabe hostil enquanto não havia acordo de paz com o Egito.
Quando se chegou à paz com o Egito, de certa forma, deixou de haver uma ameaça de que qualquer outro dos países árabes vizinhos que pudessem enfrentar Israel sem a participação das forças armadas egípcias.
O desenvolvimento de um programa nuclear iraniano aliado à capacidade balística que o Irã desenvolveu e a memória do lançamento dos foguetes scuds por parte do Iraque durante a Guerra do Golfo contra o território israelense; a combinação destes fatores provoca uma enorme ansiedade tanto na sociedade quanto no governo e nas forças armadas israelenses.
Por isso a insistência com a tentativa de limitar o programa nuclear iraniano. Mesmo com as explicações iranianas de que é um programa pacífico voltado para enriquecimento de urânio para produção de geradores que produzam isótopos médicos etc, tem sempre negado as evidências das investigações da agência internacional de energia atômica, as inspeções que deveriam ter sido feitas para comprovar que esse programa é pacífico.
Da mesma forma como ocorre no Brasil, por que não existe nenhuma contestação ao programa nuclear brasileiro? Porque os brasileiros sempre apresentaram os resultados daquilo que anunciaram que estavam fazendo. Os iranianos anunciam um programa, mas nunca permitem que a comprovação desse programa seja feita.
Mais de uma vez, foram encontradas instalações secretas que não estavam na relação de instalações à disposição da Agência Internacional de Energia Atômica para serem fiscalizadas. Então, o que causa o incômodo é a falta de transparência do programa nuclear iraniano.
Via: Brasil Econômico
Samuel Feldberg: graduado em Ciência Política e História pela Universidade de Tel Aviv e doutor em Ciência Política pela USP; Professor-doutor do Curso de Relações Internacionais das Faculdades Rio Branco, pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da USP e membro do Grupo de Análise de Conjuntura Internacional da USP.
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